por Percival Puggina
Antes de tudo, fiquem entendidos dois pontos: 1º) como todo ser realmente humano sou contra a tortura, seja qual for o lado ideológico maltratado pelos tarados que a aplicam ou permitem; e
2º) não percebo justificativa para que o enfrentamento às esquerdas armadas nos anos 60 e 70 do século passado demandasse duas décadas de governos autoritários.
Interessado na história daquele período, ouvi falar e busquei assistir o documentário Hércules 56. Trata-se de um longa, do diretor Sílvio Da-Rin, composto por entrevistas, gravações de época e uma espécie de coletiva desenrolada numa mesa de bar. Os participantes são remanescentes dos sequestradores do embaixador norte-americano em 1969 e do grupo despachado para o México, por exigência deles, a bordo da aeronave que dá nome ao filme. Entre outros, depõem, com a perspectiva que lhes permitiu um afastamento que já chega a quatro décadas, Franklin Martins, Vladimir Palmeira, José Dirceu, Flávio Tavares e Paulo de Tarso Venceslau.
Eu assistira antes “O que é isso companheiro?”, no qual Fernando Gabeira assume participação importante no sequestro. Em Hércules 56 ele some. Por quê? O diretor, após a estreia em 2006, explicou que Gabeira fora “soldado raso” na operação e jamais teria participado não houvessem os líderes escolhido para refúgio a casa onde ele morava. Em outras palavras: O que é isso, companheiro Gabeira? Vai procurar tua turminha...
Do conjunto da obra (Hércules 56 é um bom filme), concluí que, hoje, a maior parte dos protagonistas considera o seqüestro e a luta armada como equívocos que estimularam o endurecimento e a continuidade do regime. Escolheram esse caminho por descrerem do jogo democrático (numa de suas falas, contudo, Flávio Tavares, que comparece ao filme em rápidas entrevistas, se mostra satisfeito por não se haver retraído, como certos políticos da época). Eram militantes, dispostos a morrer pela revolução que julgavam estar fazendo, e sobre cuja existência real, pelo que pude presumir, não têm mais tanta certeza.
Foi exatamente aí que nasceu a observação registrada no título deste artigo: do que escapamos! Imagine, leitor, se, em vez de senhores de meia idade, reflexivos, derrotados mas orgulhosos dos seus ímpetos juvenis como se apresentam no filme, eles tivessem sido vitoriosos, e chegassem ao poder, como desejavam, na esteira do que realizara Fidel partindo de Sierra Maestra. O que teriam implantado no Brasil? Totalitarismo marxista-leninista, expropriações, tribunais revolucionários e execução de conservadores, liberais, burgueses, latifundiários, empresários, direitistas. E mais, partido único e total absorção da comunicação social pelo Estado. Era o que na época se chamava “democracia popular”, regime adotado pelas referências da esquerda mundial.
Não estarei indo longe demais? Não. Assista ao filme e ouvirá Vladimir Palmeira elogiar o chefe do sequestro, Virgílio Gomes da Silva, por lhes ter dito: “Se houver algum problema que, por desobediência a uma ordem minha ou vacilação, coloque em risco a operação, não pensem que vou esperar um tribunal revolucionário. Eu executo na hora”. Quem trata assim os companheiros, como procederá com os adversários? Noutra passagem, os entrevistados respondem à seguinte questão: caso as exigências não fossem atendidas pelo governo, o embaixador seria executado? Foi unânime a confirmação. Palmeira ilustra que essa mesma pergunta lhe fora feita no interrogatório posterior à sua prisão. Resposta: “Teria executado, sim; eu cumpro ordens!”. E os cavalheiros, ex-revolucionários, em volta da mesa do bar, riram com ele. Franklin Martins riu mais alto do que todos. E eu ri em casa, feliz por nos termos livrado de seus planos na hora certa.
Revista Voto, edição de março de 2009
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