por Demétrio Magnoli
No dia do resgate de Ingrid Betancourt, quase todos, incluindo Hugo Chávez, felicitaram o governo colombiano pelo feito que realizou. Não o Brasil. Franklin Martins, conduzido ao cargo de secretário da Verdade Oficial por ter, como jornalista, negado as evidências do mensalão, preparou uma, mas nota em tons fúnebres na qual o presidente Lula "manifestou satisfação" com a notícia e enviou "seu abraço fraternal" aos reféns não mencionou o governo da Colômbia. Horas depois, o ministro Celso Amorim engajou-se numa operação de contenção de danos, anunciando que Lula telefonaria ao presidente Álvaro Uribe para cumprimentá-lo.O resgate dos reféns representou uma derrota política para Chávez e Lula. O caudilho venezuelano empenhava-se em intercambiar Betancourt pelo reconhecimento da guerrilha degenerada como parte beligerante. Lula, obviamente, não compartilha a visão chavista da restauração "bolivariana" da Grã-Colômbia, mas também buscava um caminho para evitar a falência completa das FARC. Secretamente, por meio dos contatos do PT com a direção das FARC, o governo brasileiro tentava articular a entrega dos reféns a Lula. Há poucas semanas, esse desfecho parecia iminente a seus promotores. Agora, saudando Uribe pelo resgate, Chávez ameniza os danos à sua imagem. A nota incompetente e ideológica de Franklin Martins, ao contrário, ilumina a política fracassada que deveria permanecer no escuro.
A nota do Brasil expressou o desejo de "reconciliação de todos os colombianos", senha que equivale à solicitação de negociações com as FARC. A versão explícita está na nota emitida pelo PT, que declara apoio à "inserção dos guerrilheiros e de seus simpatizantes na vida pública" por meio de "uma saída pacífica negociada para este conflito que dura décadas, com raízes sociais e políticas profundas". A fórmula reverbera a política da nova direção das FARC, mas significa o oposto do que decidiram os colombianos em duas eleições sucessivas. Democraticamente, a Colômbia renunciou à opção, já experimentada, de negociações com as FARC. Seu governo oferece perdão aos que depuserem as armas, mas promete processar os chefes do grupo associado ao narcotráfico e responsável por violações continuadas dos direitos humanos.
Capturada pelos ideólogos petistas, a política sul-americana do Brasil insiste em desconhecer a existência de um Estado soberano e democrático na Colômbia. A nota oficial não faz menção a esse Estado, enquanto a nota do PT indica que as almejadas negociações com as FARC propiciariam "a construção de instituições democráticas profundamente renovadas" no país vizinho. É uma curiosa solicitação, emanada de um partido que jamais usa a palavra democracia quando se refere a Cuba e que aplaudiu, formalmente, a cassação de uma emissora de TV na Venezuela. A trajetória que culminou com o resgate se iniciou pelo ataque à base do número 2 das FARC, Raúl Reyes, no lado equatoriano da fronteira. Depois daquilo, acossada pela forças do governo, a guerrilha experimentou um processo de fragmentação que continua a se desenrolar. A cinematográfica versão oficial sobre o resgate deve ser lida como o capítulo público de uma história mais complexa, coberta pelo sigilo típico das ações de inteligência. Há indícios de que o resgate envolveu um ato de traição de dirigentes das FARC que se descolam do controle de seus chefes. A Colômbia conseguiu tudo isso enfrentando um isolamento diplomático regional imposto por Chávez e pelo equatoriano Rafael Correa.
As estratégias do PT seriam pouco relevantes se não se infiltrassem, através do assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, na política externa brasileira. Ao participar, na condição de coadjuvante, da operação de isolamento do governo colombiano, o Brasil trocou os interesses nacionais permanentes pelos delírios ideológicos que atravessam um partido incapaz de romper com o castrismo e o chavismo. As duas metas geopolíticas mais antigas do Brasil na América do Sul são evitar tanto uma coalizão antibrasileira de Repúblicas hispânicas quanto uma destacada presença militar de potências externas nos países vizinhos. O tratamento dispensado até aqui pelo governo Lula a Uribe empurra a Colômbia para uma aliança cada vez mais exclusiva com os EUA.
Os ideólogos petistas condenam os seqüestros promovidos pelas FARC, mas suas análises políticas sobre a América Latina se organizam sobre os mesmos conceitos e a mesma linguagem utilizados pelo grupo de origens stalinistas. Ofuscados por um antiamericanismo anacrônico, eles são impotentes para compreender que o governo Uribe lastreia a sua popularidade na realização de um programa de reconstrução da Colômbia. Quando Uribe assumiu a presidência, o Estado colombiano havia perdido o monopólio da violência legítima, que é a base da vida das nações. Hoje, sob a vigência das liberdades públicas, os grupos paramilitares de extermínio foram desarticulados e as FARC se encontram nos seus estertores. Há muito a ser feito num país onde sindicalistas ainda são assassinados periódica e impunemente. Mas os colombianos recuperaram a possibilidade de viver numa comunidade política assentada sobre regras democráticas. A Colômbia encontra-se diante de uma nova encruzilhada. A iniciativa de setores próximos a Uribe de patrocinar um terceiro mandato presidencial não deve ser identificada ao referendo constitucional chavista do ano passado, no qual se pretendia nada menos que implantar uma ditadura na Venezuela. Mas a emergência de um caudilhismo uribista solaparia as instituições democráticas na Colômbia e serviria como pretexto perfeito para o relançamento do projeto ditatorial de Chávez. O governo brasileiro, que nada viu de errado na pretensão do venezuelano, está impedido de se pronunciar sobre o ensaio continuísta colombiano.
Demétrio Magnoli é sociólogo e
doutor em Geografia Humana pela USP
doutor em Geografia Humana pela USP
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