quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

WikiLeaks

por Francisco César Pinheiro Rodrigues
A divulgação de telegramas e outros registros das embaixadas americanas, revelando o que altos funcionários pensavam, sinceramente, sobre governantes estrangeiros, intenções e "acordos" secretos entre países, foi um dos acontecimentos mais importantes nesta década. A longo prazo, pesados os prós e os contras, a diplomacia deu um passo — ou melhor, sofreu um empurrão — à frente, não para trás. Quanto menos falsidade na comunicação entre governos, melhor. A verdade — não só "filosoficamente" —, aprimora, mais que a mentira, a convivência humana. E governos são produtos humanos, embora, por vezes, subprodutos.
Não é à toa que o fundador da WiliLeaks, Julian Assange, está sendo "caçado" pela justiça, seja qual for o motivo oficial. Sempre "da-se um jeito" de enquadrar um "abelhudo atrevido" que revela as entranhas dos governos. Ressalte-se, porém, que os EUA, no mega-vazamento, foi somente o "azarão", o "boi das piranhas", embora agindo como os demais países. Todas as embaixadas do planeta procedem na forma revelada pelo atual "escândalo". Deixemos, "please", de hipocrisias.
A liberdade de crítica mordaz era estimulada pela presunção, até hoje vigorante — doravante não mais... — de que a sinceridade da observação estaria protegida de modo absoluto pelo sigilo, geral e diplomático. Muita coisa vai mudar na rotina diplomática. Se possível, que mude também na mentalidade subjacente à rotina. Lembre-se, também, que quem traiu o dever de manter o sigilo não foi Julian Assange, e sim um analista de sistema, um militar de nome Bradley Manning, trabalhando para os americanos. Assange agiu apenas como um jornalista que divulga uma informação.
A estranhável acusação contra Assange — de estupro ou assédio — parece ser "providenciada", escolhida a dedo. É especialmente adequada, na justiça, para desmoralizar alguém porque em casos de estupro geralmente basta a palavra da vítima, ou suposta vítima. Ninguém acredita, a não ser com muita prova contrária — difícil de obter —, na negativa do acusado. Ao contrário do que acontece com o relato da vítima, especialmente se ela chorar ou parecer abalada ao depor. Tais crimes normalmente ocorrem sem a presença de testemunhas, circunstância ótima para a acusação. Leves marcas locais de violência podem ser improvisadas mecanicamente antes do exame pericial. Se, eventualmente, no caso, tais crimes sexuais ocorreram — repito que me parecem improváveis — darei minha mão à palmatória. Pondere-se que, mesmo absolvido o réu, em razão da dúvida, a desmoralização fica grudada nele até o fim da vida. Nele e em tudo o que ele fez ou fará.
Obviamente, existe um "lado mau", injusto, na difusão das opiniões francas dos embaixadores americanos. A injustiça, porém, como disse, está na exclusividade da exposição. Os Estados Unidos da América foram o único país submetido ao "raio-x" da sinceridade, do "soro da verdade". Suas entranhas foram expostas à visitação pública. E não há intestino algum isento de odores desagradáveis, seja no reino animal ou governamental. Se, com tais revelações "americanas" outros países também viram suas próprias fraquezas expostas, tais fraquezas não são, de modo geral, algo semelhante a condenações judiciais com trânsito em julgado. Não são "verdades científicas", irrefutáveis. São meras opiniões pessoais de embaixadores, com o direito à subjetividade inerente a todo ser humano. Certamente, nas embaixadas de muitos países, há opiniões bem agressivas — talvez com palavrões —, pondo em dúvida a paternidade de alguns políticos americanos, especialmente odiados.
Outro aspecto "mau" das revelações em exame foi desconsiderar, sem aviso prévio, o valor abstrato e universal da privacidade. Assim como a privacidade individual é considerada um direito humano fundamental — permitindo às pessoas falarem, reservada e sinceramente, o que pensam e sentem, no lar, no bar ou no escritório — é também direito da "pessoa jurídica", no caso o Estado — e sua extensão, as embaixadas — falar o que pensam e sentem os que ali trabalham. Embaixadas existem para representar um país e colher informações sobre o que ocorre localmente. Do contrário, para que serviriam? Wladimir Putin está furioso com o ocorrido mas precisa reconhecer que nas embaixadas russas espalhadas pelo mundo ocorre o mesmo comportamento que ocorria na embaixada americana de Moscou.
Por sinal, impressiona-me, agradavelmente, constatar que praticamente todas as críticas ou opiniões desagradáveis sobre governantes estrangeiros, que aparecem no WiliLeaks, são bastante coincidentes com o que pensam as pessoas bem informadas de todo o planeta. Há apenas franqueza, não má-fé. Isso é um ponto positivo para a diplomacia norte-americana. Não percebi mentiras ou juízos deliberadamente falsos transmitidos a Washington. É claro que as opiniões e informações relacionam-se com os interesses americanos mas não seria de esperar o contrário, em qualquer embaixada de qualquer país. Os embaixadores o são de seus respectivos países, não de um governo central mundial.
Vejamos, agora, o lado "bom" do vazamento promovido pelo WikiLeaks.
Primeiro, houve uma salutar "chacoalhada" no centenariamente desconfiado mundo da diplomacia, com o isolamento e a necessária hipocrisia no relacionamento entre as nações. Todos os países, impregnados doentiamente com o já meio caduco conceito de soberania absoluta — nem um pouco interessada no bem estar dos demais países — eram e ainda são obrigados a pensar somente nos seus particulares interesses, especialmente na área da segurança. "Quem cuidará de nós, se formos agredidos? Temos que proteger nossos segredos e, principalmente, conhecer os segredos dos nossos vizinhos, porque não vivemos em um mundo de anjos. Nossos espiões, mesmo quando, em casos extremos, envenenam e matam adversários, são nossos anjos da guarda. Matamos um ou outro, discretamente, mas salvamos milhares de nossos compatriotas".
Ocorre que os interesses estatais, de riqueza e segurança, já não parecem tão "particulares" assim, face à interdependência entre as nações. Cada nova antipatia internacional — decorrente de uma crítica pessoal mordaz divulgada — é um tremendo prejuízo, político e econômico. As nações, cada vez mais, percebem que não estão sozinhas. Dependem das demais. É preciso controlar a língua. O injuriado pode — se a má opinião saiu na mídia; se não saiu, não tem importância, é usual —, mudar sua política, com penosas consequências. Wladimir Putin, indignado, já deixou isso bem claro, quando leu o que o que diplomatas americanos pensavam dele.
O lema internacional, até recentemente quase absoluto, é "cada um que cuide do seu!". Só que como a globalização chegou no comércio, na informação, na cultura, nas viagens — aproximando cada vez mais os povos —, ela acabaria se insinuando também na diplomacia, tradicional foco de conversas secretas. Quase sempre impublicáveis porque, se conhecidas, seriam talvez mal utilizadas pelos demais países, todos eles potenciais inimigos.
Cada vez mais o mundo, instintivamente, antipatiza com "segredos". Parece pensar que "se algo é escondido, deve haver algo de errado". Quer conhecer os bastidores. Talvez isso explique a boa acolhida, pelo público, dos "reality shows", "Big Brother" e assemelhados — que detesto, mesmo sem ter conseguido assistir inteiramente qualquer um deles. O mundo de hoje cansou das "verdades oficiais", que presume falsas. Anseia pela "verdade verdadeira" em todos os setores.. E isso é salutar. Quanto menos inverdades, melhor, em um mundo recheado de mentiras despejadas na televisão, no rádio, na imprensa, no cinema, na internet, no relacionamento amoroso e até na conversa entre amigos. Cada mentira é uma distorção da realidade. Somadas, desenham um quadro falso do mundo em que vivemos. Como votar bem se nossos juízos são formados em dados mentirosos? Passado o atual choque de mal estar diplomático, o mundo provavelmente se tornará um pouco mais ético. Não tanto por virtude, mas por receio.
Mesmo que as embaixadas, doravante, tomem providências minuciosas para preservar seus segredos, sempre haverá o perigo, embora remoto, da ocorrência de "vazamentos". Um anônimo funcionário da embaixada pode — por falha técnica, vaidade, ganância ou idealismo — abrir a Caixa de Pandora dos vexatórios segredos de estado. Não é o embaixador, somente, que utiliza arquivos e computadores das embaixadas. Por isso, convém controlar a boca, a escrita e o próprio espírito da política externa porque "as paredes têm ouvido" e a mídia ama especialmente as verdades indiscretas. A usual maledicência e "complôs" estarão, doravante, menos presentes no mundo da diplomacia. Não, como disse, porque os diplomatas vão se transformar em santos, mas porque se os planos secretos forem divulgados os próprios embaixadores terão que abandonar às pressas os países, fugindo dos cuspes ou das balas. E aqui entramos em outro item — peço desculpas antecipadas — que tem me impressionado vivamente.
Esse "item" é a noção de que um governo mundial democrático — inevitavelmente menos carregado de segredos hostis porque menos compartimentado — é muito mais conveniente à humanidade que o atual sistema das "soberanias" isoladas, fechadas em grupinhos, escondendo intenções. Hoje pensa-se assim: "No meu curral, digo, no meu país, eu faço e desfaço. E não revelo o que pretendo fazer. Uso o chicote ou o açúcar conforme me der na veneta e ninguém de fora pode interferir porque o conceito amplíssimo de soberania me protege, embora não possa proteger meu povo de mim mesmo. Aliás, por que digo assim se eu sou o povo!"
Reconheçamos que, hoje, a felicidade, ou infelicidade, de uma nação está na sorte ou no azar de ter um bom ou mau governo. Os atuais governantes do Zimbábue, da Coréia do Norte, da Venezuela, do Irã e de Israel são exemplos gritantes do perigo da aceitação da soberania sem temperamentos. Se ocorrer uma Terceira Guerra Mundial, uma das causas principais está na atual rigidez do conceito de soberania. Com a difusão — praticamente inevitável — das armas nucleares —como impedir que um "patriota maluco" provoque um conflito, talvez radioativo, que redundará em guerra mundial? Será necessário seguir a rotina internacional, usual de, primeiro, esperar a morte previsível de milhões de seus soldados e civis para, em seguida, vencido o "maluco", puni-lo? Hoje, ele vive protegido pelo manto intocável da soberania.
Se o planeta recebesse alguns "retoques" legais e se transformassem em uma federação democrática mundial, não haveria clima e espaço para as atuais rivalidades alimentadas pela desconfiança entre os estados. Na federação brasileira, por exemplo, cada Estado — São Paulo, Rio, Ceará, etc. — não precisa espionar os demais Estado. Não precisa manter embaixadas em todas as unidades da federação. Cuida apenas da segurança interna, sem precisar de exército, aeronáutica e marinha (quando for, topograficamente, o caso). A dispensa de todo esse aparato, civil e militar, significa uma imensa economia. E não havendo desconfiança generalizada entre os Estados da mesma federação, não há guerra de informação. Eventuais divergências entre os Estados resolve-se no Congresso Nacional. O mesmo ocorre na federação norte-americana. Estados pobres, ali, não têm o mínimo receio de serem atacados por vizinhos Estados ricos. E não havendo embaixadas, não há porque a preocupação com "vazamentos".
Com perdão pelo interesseiro "enxerto" de tema, propaganda homeopática de uma ideia — "governo mundial" —, pouco prestigiada, é o caso de concluir que, a longo prazo, a WikiLeaks teve mais méritos que defeitos no incidente: "ventilou" quartos sempre fechados. Que os estadistas ofendidos ponham a mão na consciência, façam um auto-exame sincero e sigam suas vidas, consolados com a noção de que ninguém é perfeito. Que Sílvio Berlusconi siga, na vida privada, como é, o mesmo acontecendo com demais criticados no tabuleiro internacional.
Não sou admirador de Hillary Clinton, mas não há razão para ela renunciar ao cargo só pela vazão de uma prática que tem sido universal. E repito: os diplomatas americanos transmitiram impressões sinceras, sem exageros. Conforme viam, diziam. Pior seria se mentissem ao próprio governo, distorcendo a política externa americana.
Fonte:  Mundo RI
COMENTO:  são pontos de vista interessante os expressados pelo autor. Concordo plenamente com a opinião dele a respeito da documentação vinda a público indevidamente. Em primeiro lugar, Julian Assange somente divulgou os dados que lhe foram passados pelo verdadeiro "traidor", o soldado Bradley Manning que, a princípio, não deveria ter tido acesso aos mesmos. Em segundo lugar, praticamente nada do que foi divulgado era novidade para quem tem um interesse mínimo sobre notícias internacionais. Talvez a linguagem usada pela imprensa tenha sido um pouco mais "politicamente correta" do que a que foi usada pelos funcionários americanos ao se referirem aos diversos governantes citados. A novidade ficou por conta da comprovação do que também já se suspeitava sobre a estupidez que se apossa do ser humano em situação de guerra. "`Será que é um inimigo? Por via das dúvidas, vamos eliminá-lo, antes que ele nos elimine!" Esse é o resumo cruel da luta pela sobrevivência em conflitos armados. Gostem ou não os defensores dos 'direitozumanu". Por fim, ouso discordar ferrenhamente da ideia propagandeada de um "governo mundial". As vergonhosas decisões e atuações de órgãos como a ONU e OEA, só para ficar em exemplos mais conhecidos por nós, já demonstraram que, como os serem humanos, grandes seres jurídicos (formados por seres humanos, como não poderia deixar de ser) também se deixam levar por seus interesses mais imediatos em detrimento dos interesses alheios. Isso é o bicho gente!!

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