quinta-feira, 25 de junho de 2009

Crônica Antiga: Corrupção Via Literatura

por Janer Cristaldo
Continua fazendo estragos no país o furor corporativista que assola certos ofícios. Em crônicas anteriores, comentei a regulamentação da profissão de astrólogo, cujo projeto de lei já passou no Senado. Enquanto a vigarice não toma forma de lei, um certo mestre De Rose — que não tem mestrado em coisa alguma — se propõe a regulamentar a profissão de instrutor de ioga. Os místicos se organizam e querem o monopólio do mercado das angústias humanas. Não bastassem estes senhores querer cercar de exigências os profissionais destas guildas metafísicas, um jornalista do Estadão quer agora carteirinha para escritor. Demonstrando desconhecimento da confecção de leis, o cronista Mário Prata pede ao presidente da república o reconhecimento de seu ofício: "O que eu quero, meu presidente, é que antes de o senhor deixar o governo, me reconheça como escritor". A capacidade de síntese do cronista é extraordinária: nunca se disse tanta bobagem em frase tão curta.
Esquecendo que existe um Congresso neste país, o cronista pede ao presidente a elaboração de uma lei. Mais ainda. Cita a Inglaterra como exemplo de país onde o escritor é reconhecido. Lá, segundo o cronista, toda editora que publicar um livro, tem que mandar um exemplar para cada biblioteca pública do país. "Claro que os 40 mil exemplares são comprados pelo governo. Quem ganha? Em primeiro lugar o público. Ganha a editora, ganha o escritor. Ganha o País. Ganha a profissão".
E quem perde? — seria de perguntar-se. A resposta é simples: como o governo não paga de seu bolso coisa alguma, perde o contribuinte, que com os impostos tem de sustentar autores até mesmo sem público. É o que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento: a indústria do texto. É uma indústria divina: você pode não ter nem um mísero leitor e vender 40 mil exemplares. Este é o sonho do cronista. Mário Prata viu um Potosí a céu aberto no bolso do contribuinte. Quando um político tasca a mão no dinheiro público, a imprensa horroriza-se e fala em ética. Mas se um membro da guilda sugere ao presidente da República que confisque dinheiro do contribuinte para seu bem-estar, chama-se a isto defesa da literatura nacional.
Diga-se de passagem, esta corrupção é florescente no Brasil. De fato, o Estado não compra 40 mil exemplares de cada editora. Mas através das leituras impostas em currículos e vestibulares, obriga a compra forçada dos Machados, Clarices Lispectors e Lygias Fagundes Telles da vida. Autores que, não fosse esta imposição da máfia editorial, há muito estariam gozando do merecido repouso eterno. Há quem defenda a privatização da Petrobras. Ninguém fala em privatização do livro. Pois o livro, no Brasil, é estatal.
Existe ou não existe a profissão de escritor no Brasil? Primeiro ter-se-ia de perguntar se escritor é profissão. Em um livro que causou algum escândalo na Paris dos anos 70 — Le Bazar des Lettres — Roger Gouze contestava com energia o caráter profissional do ofício. "O estatuto oficial do escritor me parece tão absurdo quanto o das prostitutas que também reivindicam o seu: não se pode ao mesmo tempo desafiar o poder, a polícia, as leis (por hipócritas que sejam) da sociedade e pedir-lhes uma proteção". Se a literatura é uma arte — argumenta o autor — o escritor deve, como todo mundo, ter uma profissão que o sustente, ao lado da arte que ele alimenta com o melhor de si mesmo. "Não uma segunda profissão, pois a literatura não é uma".
Como viverá então o escritor se a obra não lhe rende nada? "Como todo mundo" — responde Gouze. Claro que o autor francês fala de uma época em que literatura era vista como contestação. Hoje, os autores estão se profissionalizando. O editor pesquisa o paladar do público e encomenda um produto de moda. O escritor, como carneirinho dócil, escreve o que o público pede e o editor ordena. Ou o que um político paga. Fernando de Morais, por exemplo, está imerso na biografia desse caráter sem jaça, Antônio Carlos Magalhães.
No canta quien tiene ganas, sino quien sabe cantar — já dizia Martín Fierro. Escreve quem quer escrever, quem sente ter algo dizer e não consegue ficar calado. Regulamentar a profissão de escritor seria o primeiro passo para regulamentar também a de poeta. Ou a profissão escultor ou pintor. Não mais é poeta quem cria poemas, nem escultor quem esculpe, nem pintor quem pinta. Mas quem está registrado, em algum cartório, como tal. Você pode imaginar um ator que não consegue provocar um mísero aplauso em um teatro, mas é ator? Esse ator sem platéia já existe neste país incrível, pois a profissão foi regulamentada.
A pretensão não é nova, só o arguto cronista do Estadão parece desconhecê-la. O projeto que regulamenta a profissão de escritor está em tramitação na Câmara Federal há pelo menos dois anos. O absurdo foi proposta do deputado Antônio Carlos Pannunzio, por sugestão de membros da Academia Sãoroquense de Letras, de São Roque, interior de São Paulo. O projeto estabelece as normas para o exercício da profissão, nos mesmos moldes da de jornalista. Só não exige curso superior. Aprovada a lei, escritor não será mais quem escreve, e sim quem possui certificado de habilitação profissional. Ao melhor estilo do finado mundo socialista, este certificado seria fornecido exclusivamente pelo sindicato ou por associações profissionais da categoria.
Um jornalista pede ao governo para extorquir do contribuinte o dinheiro de seu sustento. Mário quer prata. Volto a Fierro:
Si la vergüenza se pierde
jamás se vuelve a encontrar.
(22/07/2002)

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