segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Bolsa Burro

Por Domingos Pellegrini
Vou contar pro senhor o que aconteceu, aí o senhor vai entender porque a gente tem de trocar esse burro velho por uma televisão nova. Aí o senhor bota um anúncio direitinho no jornal, pra sair o negócio.
A gente tinha uma carroça, puxada por esse burro, no tempo em que ele era um bicho forte, animado, trotava alegre mesmo com a carroça cheia.
Aí a gente ganhou bolsa-família e foi uma beleza, né, até cartão a gente ganhou, pra comprar cesta básica no mercado. Deu pra comprar duas cestas, macarrão, arroz, café, açúcar, feijão, óleo, a gente empapuçou de tanto comer, cada prato redondo de tão cheio.
Depois no segundo mês a gente descobriu que podia comprar só uma cesta básica e, com o resto da bolsa, podia comprar iogurte, queijo, mortadela, salsicha, milho em lata, igual gente rica. Até shampu a gente comprou, o cabelo ficou fininho que só vendo, mas no fim do mês faltou feijão.
Daí as moças do governo apareceram lá no barraco perguntando se a gente tinha também o bolsa-escola, mas a gente não tinha criança pra ir na escola, daí arranjamos um sobrinho e um priminho pra cadastrar que moram com a gente e pronto, biscoitamos também o bolsa-escola.
Aí descobrimos que, em vez de cozinhar com lenha catada pelo mundo, a gente podia ter vale-gás, e compramos um fogão usado, um botijão velho e pronto, a gente tinha gás pra queimar o mês inteiro, se ninguém esquecesse o fogo ligado como aconteceu na primeira semana mas depois aprendemos.
Aprendemos também que, passando dos sessenta ou setenta anos, não lembro mais, a gente podia pedir a bolsa-idoso, então jogamos fora documento velho, tiramos documento novo com mais idade e pronto, com três bolsas viramos os milionários da favela.
Até vizinho invejoso concordou quando a gente falou que não precisava mais viver catando papel e lata com a carroça, e por falta de serventia fomos deixando de levar o burro para pastar, ele ficou comendo os capinzinhos de volta da favela mesmo, amarrado numa corda comprida.
Burro é bicho que não faz questão de muito trato, né, é quase que nem cabra, come de tudo.
Mas o bicho às vezes ficava o dia inteiro de orelha murcha, um dia descobrimos que era porque uns meninos endemonhados mijavam no latão dele tomar água.
Encompridamos a corda pra ele alcançar o riacho, mas o bicho é entojado, só bebia do riacho depois que chovia e o riacho enchia e perdia esse cheiro fedido, uns dizem que é por causa de muito esgoto, outros dizem que é muito despejo de fábricas, o certo é que o burro teimoso passava dias sem beber.
Enquanto isso, a gente pensou até em vender a carroça, pra não ficar esse trambolho lembrando o tempo em que a gente tinha de catar papel e lata pelo mundo pra viver.
Aí o nosso primo, pai do priminho que emprestou pra nós, precisou dele lá na casa deles, por causa de um tal recadrastamento, palavra difícil que a gente só aprendeu a falar porque ouvimos demais, foi um inferno na nossa vida, só trazendo desgraça, dá vontade de castrar quem fala em recadrastamento.
Pra encurtar a história, descobriram que a sobrinha também não era filha nossa, e desconfiaram que a gente não tem a idade que disse que tinha, e no fim das contas cortaram a bolsa-escola e a bolsa-idoso, a gente ficou só com a bolsa-família, que não dá pra sustentar uma família, a não ser que a família trabalhe.
Mas a gente perdeu o jeito e o gosto pra trabalhar.
Um vizinho puxou energia de um poste, e nós puxamos do vizinho, pagando uma micharia, porque ele não paga nada mesmo.
Agora a gente achou uma antena num lixo rico, e o vizinho garante que, com ela, a gente pode pegar um punhado de canal.
Por isso a gente precisa trocar o burro por uma televisão, dessas grandes, pra não cansar a vista, e a carroça pode ir de lambuja.
Parece que com mais uns anos a gente pega de volta o bolsa-idoso, porque envelhecer a gente vai sempre envelhecendo, né.
Por isso também precisa aproveitar a vida, que é uma só, e diz que agora tá passando uma novela que é um estouro.
Não, o burro não tem nome. Nunca botamos nome nele, a gente chamava ele de Burro.
Burro pra cá, burro pra lá. Agora, adeus, burro, que a gente precisa aprumar a vida. Ainda se existisse bolsa-burro, a gente continuava com ele, mas assim não, a corda já tá muito comprida e às vezes enrola, dá um trabalho danado desenrolar.

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