sábado, 17 de janeiro de 2009

Papagaio de Botinas

por Marli Gonçalves - (15/01/2009)
Governo é coisa séria. Poder subindo à cabeça, pode ser mais sério ainda. Não vivemos em uma piada de salão, nem em uma fábula ou conto. Mas veja se você conhece essa história. Deixe-se levar.
Era uma vez um presidente de um país super legal, conhecido no mundo inteiro por seu enorme potencial, por suas belezas naturais, seu povo bom, acolhedor, complacente e boa gente. Uma figura até boa, bonachão de bochechas vermelhas principalmente quando toma uma boa ideia. Baixinho, gordinho, grosseirinho, barba preta que ficou branca, mas com muitas histórias — algumas reais, coisas vividas há muitos e muitos anos atrás — e muitas lendas a seu respeito, esse presidente era para ser mais do que a cara desse país. Era para ser sua rendição. Afinal, ele era vindo do povo, tinha sido um dia um trabalhador comum, de fábrica, assalariado, conhecia as agruras deste povo. Ele já havia tentado ser presidente muitas vezes, mas sempre perdia a vez, ou porque caía em algum buraco da campanha, ou porque aparecia gente muito forte e melhor para concorrer com ele. Chegou até a desistir, mas resolveu arriscar uma última tentativa e foi eleito, finalmente. O povo festejou muito, inclusive nas ruas, mas não tinha percebido que muito tempo tinha se passado desde então, e que aquele homem já não era o mesmo.
Esse presidente virou mesmo foi um papagaio de botina, definição dada a esse tipo de gente por meu pai, caboclão amazonense casca-grossa, hoje aos 90, quase 91, e que sempre acostumou chamar assim figura pública que faz isso, e eu até acostumei a ouvir, ver, entender e lhe dar razão. Tem muitos papagaios de botina famosos — um dia faremos uma lista deles. Não é uma excelente definição, embora quase um xingamento? Quando o vejo diante do noticiário de tevê, comentando as coisas que o papagaio de botina barbudo” fez, falou, prometeu, disse que mandou fazer ou tentou convencer o povo, fico surpresa. Esse presidente o tem deixado tão irritado que ele larga até a letargia habitual da sua poltrona, e usa aquela expressão que no Nordeste é igual a golpe de peixeira: Isso é um safado!.
Meu pai sabe que já votei nesse presidente, que fui fundadora do partido — aliás, minhas atividades à esquerda sempre deixaram minha família de orelha em pé. Mas, hoje, quando ele fala sobre o tal presidente, sabe que pode contar comigo, e que há muitos anos eu não posso e nem quero e nem consigo mais defender atos desse presidente e “seus asseclas”, roubando mais uma vez o linguajar do meu índio velho do Amazonas, meu pai bugre. Papai tem certo gostinho nisso, já que nunca botou muita fé no tal homem, desde o início, lá atrás. E, garanto: não é por preconceito, por fineza, por burguesia, por considerá-lo inculto ou iletrado. Meu pai fala da vida vivida e enfrentada, uma vez que trabalha até hoje, duro, e é um exemplo para quem o conhece. Esse sujeito não quer é trabalhar, dizia, a cada anúncio de greve.
Mas agora não dá mais. Está em crise o país das mil maravilhas que o tal presidente quer forçar na tevê, em anúncios chatíssimos, milionários, para enganar trouxas, em falas debochadas e divertidinhas, em piadinhas de mau gosto que a cada dia estão se tornando rotina (terá esse presidente contratado um humorista assessor só para construir blagues para ele usar no noticiário? Pode até ser, porque o presidente de quem falamos é historicamente ligado a gente sem qualquer humor, os sisudos do pczão, e pczãodobê, os intelectuais de plantão, os ex-combatentes-de-alguma-coisa-um-dia, os dogmáticos certos e compenetrados na defesa dos miseráveis, os nunca-antes-nesse-país, top-tops, e quetais).
Meu pai nos últimos meses acabou de se “entortar”, e agora perde o pouco que não tem e o muito que poderia até fazer, e dever. Está fechando as portas de sua lojinha de mais de 40 anos. Ele e vários de seus antigos amigos, vizinhos, aqui da boca do lixo do centro de São Paulo. A coisa já estava feia ali, também porque certo Matarazzo, querendo aparecer bem na fita e ajudar a especulação imobiliária do bairro de Campos Elíseos, tentou uma limpeza, como eles próprios definem uma coisa que devia ser óbvia. O conde varreu a sujeira da cracolândia para debaixo de um tapete. Varreu. Mas para o outro lado da avenida. E agora ainda muito mais perto do comércio, do centro, das pessoas normais, do comércio normal. É indescritível o que se vê ali, na luz do dia, e o que os bandos de nóias (os moleques alucinados pelo crack) fazem pela região. Antes, era só prostituição, estelionato, cabritagem de motos e carros, ciganos perdidos, mas bandido convivia bem com bandido e com gente. Nóias não convivem com ninguém.
Esse é o país do presidente que tira férias em plena crise, inclusive internacional que dá bronca no Bush, embora ninguém saiba em que língua, que nosfo e passeia, para lá e para cá, ao lado sempre de uma tal galega, que até agora não diz nem o que poderia por mero acaso fazer, que balança a cabeça em evento de palanque.
Dizem que vinho, quanto mais velho, melhor. Que as pessoas se tornam mais sábias quando vão ficando mais vividas. Mas, nesta história que conto, esse presidente sempre se achou muito bom, esperto, e que não precisava melhorar. Muito menos ler, estudar, cuidar de seu próprio espírito. Depois de eleito, então, ele começou a se sentir o máximo. O rei da cocada preta. Um dos líderes mundiais. O bonitão do pedaço. O melhor de todos. O fura-bolinho. E o que é pior, com dinheiro para aplicar em propaganda, e sua conhecida lábia e habilidade de falar como se ainda fosse do povo, fez com que conseguisse o que chamam de alto índice de uma tal aprovação. Pesquisas são feitas, um monte de gente — menos você — é questionada. E esse resultado, cada vez que é propagado, cria dúvidas. O povo não pode parar para entender. Tem de trabalhar, e acaba apenas comentando entre dentes, e sem obter respostas: Como é que pode?
Isso já está acontecendo há muitos anos nesse país, mais de cinco, menos de oito. Mas ultimamente está passando dos limites e de forma que nos ultraja até no exterior, de onde dependemos de investimentos e boa imagem. Esse presidente diz — ai, ai, ai — que dá azia ler jornal, que apenas ouve o que seus “confiáveis” (!!!) assessores lhe informam. E o que é pior: todo presidente deveria fazer isso, segundo ele. Aliás, esse presidente anda com outros amigos presidentes de arrepiar os cabelinhos, umas figurinhas difíceis, esquisitas e candidatos a ditadorezinhos, coisas não cogitadas nem pela imaginação de Gabriel Garcia Márquez. Com esses amigos, que ele parece amar, esse presidente trança, trança, mas sempre acaba é nos dando muitos prejuízos. Pior ainda: o tal presidente praticamente tem um problema psicológico e loucura por ser o primeiro, o Mais, o Melhor, e concorre por troféus. Uma coisa impressionante. Assim como a verdadeira loucura que ele tem de se sobrepor e contrapor a outro homem, um mais chique e muito considerado, ex, que governou esse mesmo país legal também por dois mandatos. Pior que Flora e Donatela. Eu fiz mais isso, eu fiz mais aquilo, nunca antes, eu fiz mais isso, e farei aquilo.
Fala, fala, fala. Tanto que a massa do povo desse país — de enormes dimensões e pouca comunicação real — acaba acreditando. Entra por todos os poros. Tanto bate até que fura — água mole. E toma bolsa na cabeça! Bolsa Família, emprego, salário, casa. Toma Dona Cota também — racial, parcial. E emprego para quem tem estrela no peito, muito emprego, muitos cargos. Está tudo dominado. E o tal presidente, então, se sente amado, um verdadeiro rei Arthur e sua Távola de linhas retas de Niemeyer.
Mas o negócio está piorando, e agora esse presidente inventou um anteparo, uma amiguinha, que estaria preparando para sua gloriosa sucessão. A amiguinha, que não é boba nem nada, toda pimpona, vendo até onde pode chegar, e mesmo sabendo que como em toda historinha e fábula que se preze, a moral da história precisa prevalecer. Quando dois se digladiam, um terceiro enche o bico. E esse terceiro, adivinhe se não é o próprio, elezinho da silva. Quando não tem tu, vai tu mesmo. Elezinho da Silva.
E nós? Nós não vivemos em contos de fadas, nem em fábulas.
Nós? Apenas queremos ser felizes para sempre, mas os anos passam e ele, o presidente dessa história, não percebe que gato escaldado tem medo até de água fria. E somos nós, os gatos, e se Deus quiser, não os ratos, que resolveremos a parada daqui a dois anos.
Preste atenção, mas antes do final da história, por favor. Uma mentira nunca vem só. Em terra de cego, quem tem um olho anda vendo coisas. Uma boa jogada revela a próxima. Diga-me com quem andas e te direi quem és. Quando algo é tido como verdade, o que é diferente parece mentira. Se você for falar sobre um bicho para uma pessoa que nunca viu um, melhor fazer com que ela o veja primeiro. Quem tudo quer tudo perde. O orgulho precede a queda. Quem finge ser o que não é, costuma trair-se pelo exagero.
Marli Gonçalves, jornalista, sentindo-se perdida no buraco do País das Maravilhas,
vendo que antes da meia-noite a carruagem pode virar abóbora,
e é a princesa quem vai jogar o sapatinho.
Pior: a cigarra anda se dando melhor do que a formiga,
e a garota do leite vai derrubar a jarra e sujar o vestido Chanel.
E o que é mais terrível: o Príncipe Encantado vai estar com tanta fome
que é capaz de comer a maçã, antes de dar o beijo de acordar.
(marli@brickmann.com.br)

Fonte: Ucho Info

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