terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Incompreensível Anistia

por Jarbas Passarinho
A decisão esdrúxula e recente de "anistia" concedida ao ex-presidente João Goulart, e à sua viúva, é um exemplo do critério insustentável da facciosa Comissão de Anistia. Anistiou o ex-presidente de quê? De ilicitudes a ele injustamente atribuídas, que requerem perdão? De ter sido deposto? Anistia-se a vítima? Ora, é indubitável que o 31 de março de 64 foi uma contra-revolução. A esquerda o confirma. Um autor marxista, Jacob Gorender, fundador do PCBR, preso na luta armada, respeitado pela honestidade histórica, em seu livro Combate nas Trevas assim resume, no jargão marxista, o que chamou de pré-revolução: "Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contra-revolucionário preventivo. A classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse" (página 67).
No mesmo livro, transcreve de um relatório do PCB, de fevereiro de 64, esta passagem: "Jango continua com o plano do golpe, pelo que deve entrar nas nossas análises, pois o processo político se está desenvolvendo com incrível rapidez" (página 60).
Ainda no mesmo livro se lê que o Comando dos Grupos dos Onze, reunido sob a presidência de Leonel Brizola, no dia 24 de março de 64, "considerou que tinha maior probabilidade o golpe vindo de parte de Jango do que da parte da direita" (página 62).
A aliança, confessa-a ninguém menos que Carlos Prestes, no livro Prestes, Lutas e Autocríticas, ditado ao jornalista Dênis Moraes, no qual descreve a ligação com João Goulart: "O deputado federal Marco Antônio Tavares Coelho representava o partido nas articulações com Jango" (página 167).
Em casos especiais, o próprio Prestes assumia a articulação política: "Quinze a vinte dias antes do golpe, Jango me mandou entregar uma cópia do Projeto Brasil, através de Darcy Ribeiro, seu chefe da Casa Civil. Levei o assunto à Comissão Executiva (do PCB) que o aprovou" (página 173). "Eu tive vários contatos com Jango. Não me lembro qual foi o primeiro. O último foi nas vésperas do comício de 13 de março, na Central. Ele me disse que 20 generais estavam do lado dele. Até queria me apresentar a alguns desses generais. Fiquei preocupado. Eu conhecia bem os generais brasileiros e sabia das posições anticomunistas da maioria deles".
Tão forte era o compromisso, que Dênis escreve: "No dia do golpe, Prestes descobriu que o movimento de massa estava isolado. Ainda pensou em resistir. Apelou para os comunistas organizados na Aeronáutica e pediu para que fosse bombardeado o Palácio Guanabara, onde Lacerda estimulava a ação dos golpistas. A resposta o dissuadiu de novas tentativas: todos os oficiais tinham passado para o outro lado" (página 169). Era ou não uma aliança até para uso de força?
Confiado no apoio de um "tripé" (sindicalista, político e militar), de que lhe garantia o general-chefe do Gabinete Militar ser capaz de "cortar a cabeça" de quem tentasse derrubá-lo, Jango ordenou à guarnição poderosa do Rio de Janeiro que jugulasse a pequena tropa militar sublevada em Juiz de Fora. Ao dar-se conta de que, ao revés, ela houvesse se aliado aos sublevados, sondou os demais comandantes dos diferentes exércitos regionais. Concluiu que o tripé não passara de uma bravata. Viajou para Porto Alegre, certo de não ter como manter-se na Presidência. Lá o esperava Leonel Brizola, que tudo fez para Jango mudar de idéia e resistir. Já tinha conseguido o apoio do comandante do III Exército e não admitia a entrega do poder, mesmo que a correlação de forças lhe fosse desvantajosa. Insistiu, exaltado, na sua proposta, sugerindo até que um ministério fosse ali mesmo nomeado para caracterizar a continuidade do governo. João Goulart, porém, não a aceitou. Portou-se como um estadista vencido, que não aceitava solução no derramamento de sangue, numa guerra civil. Um gesto nobre. Prosseguiu o vôo para o exílio.
Essa lição não a entendeu a comissão que agora o anistiou e acrescentou indenização extensiva à viúva. Terá visto no fato de resistir ao açodamento de Leonel Brizola uma grave falta de João Goulart. Como reparação, perdoou-o e o inclui no rol dos muitos a que ela tem proporcionado dinheiro que Garret chamava de "excremento do demônio".
Fonte: Correio Braziliense - 2 Dez 08
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