domingo, 30 de novembro de 2008

Sobre a Estória de João Cândido

por Gilberto Roque Carneiro
O noticiário televisivo recentemente deu ênfase à inauguração da estátua do "almirante negro" (a TV Globo chegou até a informar que a revolta se dera por uma pena de 250 açoites, a serem aplicados a um marinheiro transgressor). Entretanto, a verdade é, como sempre, um pouquinho diferente e, por mais que tentem reescrever a história do Brasil, a memória sempre fica.
O texto abaixo foi enviado à imprensa e, evidentemente, não será publicado. Mas, vale a pena ser lido. 
Pior é que João Cândido, um marinheiro antigo, de trinta anos, não foi um amotinado naquela revolta. O motim vinha sendo urdido por marinheiros novos, vindos das novas Escolas de Aprendizes do Nordeste, mais intelectualizados e cooptados por políticos. O Marechal Hermes da Fonseca assumira há uma semana. Tinha derrotado Rui Barbosa nas urnas. Trazia de volta os militares ao poder, que haviam perdido desde a saída de Floriano Peixoto, quinze anos antes.
A Revolta dos Marinheiros em 1910 eclodiu no “Encouraçado Minas Gerais”, recém recebido na Inglaterra. Na véspera o Comandante Batista das Neves havia punido um marinheiro com 25 chibatadas, a pena máxima prevista em lei. 
Cumpria o doloroso dever dos Comandantes ao julgar um subalterno que havia navalhado no rosto um companheiro dormindo. Como os ânimos estavam exaltados, resolveu dormir a bordo após voltar de um jantar num navio estrangeiro, na boia, com o navio fundeado na Baía da Guanabara. Dispensou seu Ajudante-de-Ordens no portaló e rumou para o camarote, sendo tocaiado e trucidado por golpes de machado de Controle de Avarias. Era cerca de meia noite. 
Instalou-se grande confusão a bordo, com mortos e feridos. Não era um motim de marinheiros contra oficiais. Muitos subalternos lutaram junto aos oficiais. Outros navios, também fundeados, imaginaram que a revolta política havia começado, alguns aderiram. Na verdade, adrede marcada, eclodiria quinze dias depois, como eclodiu no Batalhão Naval, onde hoje está o Comando Geral do Corpo de Fuzileiros Navais.
João Cândido entrara para a Marinha em Rio Grande, pelas mãos do então Capitão-de-Fragata Alexandrino de Alencar, de cuja família era cria, com quinze anos de idade. Em 1910, amigo dos Oficiais, principalmente por sua ligação com o ex-ministro Alexandrino, que acabara de deixar o poder, foi encontrado pelos verdadeiros revoltosos, escondido nas entranhas do "Minas Gerais", e forçado a entregar o manifesto da revolta aos deputados que rumavam para o navio numa lancha. Na verdade um só deputado, Oficial da Marinha na Reserva, aceitou a incumbência. 
Esse documento, cujo original está arquivado no Serviço de Documentação Geral da Marinha, escrito a mão, por gente letrada, estava pronto e tinha data posterior ao dia da entrega. Nada falava sobre castigos físicos, sim da vida dura da guarnição, rancho ruim, falta de pessoal, soldos baixos, etc 
A chibata, deflagradora do motim no "Minas", abortando o movimento, foi o pretexto arranjado pelos políticos, para militarizá-lo e cair fora das conseqüências. Políticos debateram no Senado, que como sabem ficava na Cinelândia, sob a hipótese de bombardeio do Centro da cidade. Os jornais divulgavam as notícias, alarmando a população. O Presidente Hermes da Fonseca fora Ajudante-de-Ordens de seu tio, Deodoro da Fonseca, quase duas décadas antes, quando assistiu à sua deposição em condições semelhantes. Tudo indica que o movimento, de maior abrangência do que foi divulgado, pretendia depô-lo. Mas provas não existem. Após o pesado bombardeio ao Batalhão Naval, comandado pelo General Menna Barreto, cujo Estado-Maior ocupou o Edifício Marquês de Tamandaré, da Marinha, muitos documentos foram destruídos, inclusive depoimentos colhidos nos diversos inquéritos em andamento.
Esta história toda custou a ser estudada, principalmente pela vergonhosa participação da Marinha. João Cândido, negro, analfabeto, filho de escravos, foi usado por décadas como suporte a políticos populistas e ainda está sendo. Gostou do papel glorioso que lhe atribuíram. Assim, a história de sua vida é deturpada. Declarou, no Inquérito, que era nascido na Argentina. Na verdade foi numa fazenda próxima à fronteira no Sul.
Em 1963, quando estava eu na Escola Naval, no navio-hidrográfico "Canopus", o Comandante Varella e seu Imediato Manhães foram assassinados por um Marinheiro julgado e punido na véspera com a pena máxima — dez dias de prisão rigorosa —, a golpes de "machado de Controle de Avarias.” Não acham muita coincidência? 
Por essa época, 1963, fazia sucesso o único livro publicado sobre a dita Revolta da Chibata, em tom ideológico, por um jornalista chamado Edmar Morel, comunista conhecido, quase um incitamento à insubordinação de marinheiros. Nessa época João Cândido frequentava o Sindicato dos Metalúrgicos, a convite, para contar detalhes de sua gloriosa história. Foi nesse sindicato que marinheiros se abrigaram, estimulados pela inoperância do Presidente João Goulart, para desafiar os chefes navais e a Instituição.
O Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, recebeu e rendeu homenagens a João Cândido, já envelhecido, mas envaidecido pelas múltiplas e periódicas homenagens em diversas situações. Considero o valor desse cidadão por ter conseguido manter essa impostura por toda a vida e até depois da morte. 
O Almirante Hélio Leôncio Martins, historiador naval ainda vivo, primeiro Comandante do Navio-Aeródromo "Minas Gerais", estudou a fundo a "Revolta dos Marinheiros de 1910", documentou-se e publicou seu trabalho num livro de curta tiragem, na década de 1980. Li-o em 1998, colhido numa estante do Clube Naval. Comparei-o com o do Edmar Morel, de 1963. 
Enquanto o último só relata os jornais da época e o que dizia João Cândido, já senil, endeusando-o, o Almirante Leôncio produziu um trabalho encadeado, fartamente documentado, nada emocional, narrando fatos e deixando as conclusões para o leitor. 
Hoje tudo que ouço falar e vejo escrito na imprensa sobre o assunto, está pautado no livro de Morel. É pena! Fazer o quê. Recontar as mazelas da Marinha no passado? Faço isto sem prazer. 
Algumas vezes mandei estes escritos para a Imprensa. Fui ignorado. Não vende. A história ao contrário sim. Recentemente a família de João Cândido foi indenizada no que foi contado nos jornais como anistia. 
Mas como? Ele já foi anistiado três vezes. 
A primeira logo após a revolta, pelo Congresso. A Marinha não aceitou, prendeu-o junto com os outros. Teriam que pagar pelo menos pelo assassinato do comandante do navio, o Capitão-de-Mar-e-Guerra Batista das Neves. 
Foi anistiado novamente depois, não seguindo para a Amazônia com os outros, para trabalhos forçados no Acre, na construção da ferrovia Madeira-Mamoré. 
E agora, por influência da Ministra Marina Silva, pelo Congresso, com direito à indenização. Detalhe: ele faleceu em 1979.
O verdadeiro líder da Revolta apareceu na década de 1940, no interior da Bahia, contando a história do planejamento, urdido numa casa próxima ao Campo de Santana, no Rio de Janeiro, onde se reunia com civis. Chegou a escrever uma carta anônima para o Serviço de Documentação Geral da Marinha, desmascarando João Cândido. Chamava-se Francisco Martins. Apurou-se que ele não servia no Encouraçado "Minas Gerais", mas em um dos navios engajados. Estranhamente conseguiu dar baixa da Marinha uma semana depois, silenciosamente. 
O cabo Anselmo, líder da insubordinação dos marinheiros em 1964 também está vivendo clandestinamente. Vem tentando obter anistia, promoção e indenização. Conseguirá?
Agora vejo transferirem a estátua de João Cândido para a Praça XV. Estava no Museu da República há pouco tempo. Com tristeza.
Gilberto Roque Carneiro 
é Capitão de Mar e Guerra inativo
Fonte: Reservativa

Um comentário:

Anônimo disse...

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Barbara Gagnon
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