quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Atitudes Dignas

por Emerson Rogério de Oliveira
Jornal O SUL, de 04 Out 2008
Relembro um fato inédito que chamou a atenção dos presentes à cerimônia de entrega de medalhas, realizada no dia 25 de Agosto de 2005, por ocasião das comemorações do Dia do Soldado, em Brasília. Com a presença de Ministros de Estado, Comandantes das Forças Armadas, convidados e familiares, foi entregue a Medalha do Pacificador. 
Depois do
dispositivo pronto, um senhor idoso, apoiado em uma bengala, vestindo roupas escuras e gravata preta, portando em seu peito a Medalha do Pacificador, atravessou toda a frente do dispositivo até o local onde estava a autêntica espada do Duque de Caxias. Com lágrimas nos olhos, retirou a medalha do peito, elevou ao alto, à frente, à esquerda e à direita. Depois de beijá-la, colocou-a no seu antigo estojo e a depositou aos pés da coluna onde estava a espada de Caxias.
Voltou, passou silenciosamente pela frente do dispositivo, indo sentar-se na arquibancada de cimento, diante do palanque.

Perguntado por que devolveu a medalha, respondeu que ela havia sido desonrada e desprezada, em flagrante desrespeito à figura do insigne patrono do Exército, o Duque de Caxias, por já ter sido distribuída a pessoas que não mereciam tal honra. Disse mais, que, se a recebeu num ato solene, seria justo devolvê-la também num ato solene.
Esse senhor idoso é o Coronel de Infantaria Reformado/Inválido Cícero Novo Fornari. Na época tinha 74 anos, desses, 43 de serviços prestados ao Exército e à Pátria.
A imprensa divulgou o fato em poucas linhas, mas eu o destaquei pela sua atitude digna e corajosa em meu livro Trincheiras Abertas, que lhe chegou às mãos por um amigo. Em dia recente, ligou-me de Brasília, onde mora, para agradecer-me e perguntar-me se eu tomara conhecimento do que lhe aconteceu depois daquele fato. Respondido que não, contou-me que, durante um passeio com a esposa pelas ruas de Brasília, resolveu entrar em uma loja de antiguidades — uma mistura de velhos objetos com brechó. Apoiado pela bengala visitava prateleiras e balcões, olhando as mais variadas quinquilharias e artigos ali expostos, parando em frente a uma redoma de vidro onde estavam diversas medalhas militares, cuidadosamente alinhadas num feltro verde. Atento, o dono da loja aproximou-se, cumprimentou-o e passou a discorrer sobre o histórico das medalhas, as suas origens, quem as mereciam ..., e, por fim, perguntou se ele desejava comprar uma. Apesar de não ter obtido resposta, sabia que iria negociar com aquele homem calado, pois já vira aquele brilho nos olhos de muitos clientes. Abriu a tampa da redoma e continuou com a explicação, mostrando-lhe a medalha da Primeira Guerra Mundial, da Segunda, do Serviço Amazônico.
Tentava cativar aquele cliente que parecia paralisado, que ainda não abrira a boca, mas também não tirara o brilho dos olhos, e, então, o vendedor apontou o dedo para uma Medalha do Pacificador e perguntou se ele lembrava do caso daquele Coronel do Exército que devolveu a sua Medalha do Pacificador numa cerimônia em Brasília, depositando-a junto à espada de Caxias, sob o olhar e o silêncio dos presentes. 
O Coronel levou um choque. Ergueu a cabeça para aquele homem gentil e educado, que evocava lembranças de um fato da sua vida. Valeu-se da bengala para melhor firmar as pernas trêmulas das muitas jornadas, e contendo a emoção falou pela primeira vez desde que entrara naquela loja: "Não me lembro, mas deve ter sido um velho "gagá", meio maluco, pra fazer isso!"
Surpreso, o dono da loja retrucou-lhe com veemência, dizendo que ele estava enganado, pois o Coronel era um homem honrado e tomou uma atitude digna naquele dia, uma vez que essa medalha passou a ser concedida a pessoas que não preenchiam os requisitos para tal, perdendo, assim, o seu valor.
O Coronel sorriu, mostrou-lhe a identidade, e disse-lhe: "Pois saiba o senhor que esse Coronel está à sua frente. Fui eu quem devolveu a medalha".
O coitado do homem ficou pasmo, olhou para a identidade, olhou para o Coronel e, num gesto largo e espontâneo, abraçou-o. Imediatamente pegou a medalha, empertigou-se, esboçou um gesto solene e prendeu-a no peito do Coronel, dizendo-lhe: "Ela é sua! Estou devolvendo-a para o lugar de onde nunca deveria ter saído".
A surpresa agora era do velho e experiente militar. Quis impedir-lhe o gesto, mas não conseguiu. Tentou pagar-lhe o valor da medalha, também não conseguiu. E o vendedor, com um sorriso largo, disse-lhe: "Coronel, o senhor mereceu essa medalha pelo seu trabalho e dedicação à Pátria. Estou feliz por devolvê-la".
Os dois velhos emocionados se abraçaram. O Coronel agradeceu-lhe, juntou-se à mulher e, com passos lentos, auxiliados pela bengala, retirou-se da loja, levando a sua Medalha do Pacificador no peito. Certamente também levava os olhos marejados. 
Atrás dele, um homem feliz pelo resgate que fizera naquela tarde observava-o partir, tendo a certeza de que aquele foi o seu melhor negócio do dia.
Gesto isolado, sem pompa e sem testemunhas. Mas nobre e grandioso, porque esculpido na dignidade das suas atitudes, provando que os valores morais são cultuados por homens, não por sombras. Nem tudo está perdido. 
Emerson Rogério de Oliveira
Militar Reformado e Escritor

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